Resumo

O artigo tem como objetivo descrever as alterações na rotina de pessoas com deficiência frente ao adoecimento por Covid19 e às medidas de enfrentamento em curso no estado de Alagoas, na região nordeste do Brasil. São analisados dados de entrevistas em profundidade com sujeitos marcados por diferentes experiências de deficiência visual, auditiva, motora e intelectual. Os participantes integram um projeto de extensão sob responsabilidade da primeira autora, iniciado em 2019, que movimentou a Universidade Federal de Alagoas a partir da presença, da circulação e do engajamento de corpos e mentes que escapam às convenções de normalidade no espaço acadêmico. Nos contatos mediados por diferentes aplicativos digitais de comunicação foram explorados os seguintes assuntos: 1) o impacto da pandemia nas condições materiais de existência resultado da perda de renda individual e/ou familiar; 2) o surgimento de novas demandas relacionadas à saúde física e psíquica bem como as mudanças nas estratégias terapêuticas anteriores; 3) a caracterização do acesso às tecnologias de comunicação, as novas possibilidades e as restrições para a manutenção dos vínculos extra-familiares, como o contato com amigos, participação em mobilizações sociais e em atividades acadêmicas. Na análise, enfocamos as dinâmicas mútuas de cuidado, especialmente o engajamento em práticas de suporte e assistência junto a seus familiares e amigos. A atenção às modificações no ambiente a partir das diferentes demandas coletivas em face à pandemia, expõe deslocamentos nas formas de corporalização da deficiência e também a eficiência e capacidade de dar respostas potentes a demandas complexas de adaptação. A intersecção entre raça, gênero e classe também é central para identificação de continuidades, que envolvem a preexistência do distanciamento físico como realidade da deficiência.


1. Deficiência, pesquisa e posicionalidade

Meu nome é Agaítalo Vasconcellos Júnior 1 sou um homem branco de 39 anos, com uma deficiência adquirida. Sobrevivi a um ataque corporal quando em 1° de outubro de 2010 fui copiosamente agredido e fiquei em coma por três meses. Durante esse período de perda da consciência, algumas pessoas próximas se perguntavam se eu voltaria a ser algo parecido com o que era antes. Acordei com diversas alterações na motricidade do meu corpo e dos dedos das minhas mãos, que estavam fechadas, dificultando o meu tato em práticas corriqueiras, tais como segurar talheres ou escovar os dentes. Meu andar e meu falar também foram profundamente afetados. A causa da minha deficiência foi um episódio de violência extrema relacionado à intolerância que não é incomum no estado de Alagoas. 2

Nesse mesmo ano de 2010, eu Nádia Meinerz que sou uma mulher branca de 39 anos, migrei do Rio Grande do Sul para Alagoas para trabalhar na UFAL. Numa ocasião de convívio, ouvi de meus colegas sobre o ocorrido com Agaítalo, como um evento trágico com um estudante que havia recém-concluído a graduação em Ciências Sociais. Nessa época, eu já pesquisava deficiência e estava me inserindo na única escola do estado que aceitava alunos surdos, contando com a assistência de intérpretes de LIBRAS. Mas não pensava na violência como causa de lesões que conformam experiências singulares da deficiência. 3 Nos conhecemos pessoalmente em 2017 quando recebi a inscrição para o recém-criado curso de mestrado em Antropologia Social. Foi a primeira candidatura à vaga de pessoa com deficiência do curso, em face das políticas afirmativas inauguradas pela instituição nesse mesmo ano. 4 Tivemos a oportunidade de trabalhar juntos apenas em 2019, quando substituí sua orientadora (que estava afastada para o pós-doutorado), na supervisão do estágio docência. Dessa aproximação, surgiu a primeira movimentação de pessoas com deficiência interessadas em conhecer os estudos sociais da deficiência na UFAL. 5

Eu, Débora Allebrant, sou uma mulher branca de 38 anos e também conheci Agaítalo em 2017, quando fui avaliadora na seleção para o mestrado em Antropologia Social. Embora algumas circunstâncias da deficiência tocassem o seu projeto de pesquisa e outras fossem comentadas pelos meus colegas que foram seus professores na graduação, eu só vim a conhecer sua história, a partir de sua própria narrativa para antes, durante e depois da deficiência na ocasião da entrevista para este artigo. Não fui professora de Agaítalo durante a permanência no curso, ocupando apenas papéis de autoridade como membro da banca de seleção e posteriormente, coordenadora do programa. Foi a partir da entrevista que realizamos em 2020 que sequelas neurológicas do ataque e seus desdobramentos para o engajamento nas atividades acadêmicas suscitaram uma implicação de minha parte. Como pesquisadora, minha atuação está situada no campo dos estudos sociais da ciência e da tecnologia e esta pesquisa é o meu primeiro contato com o tema da deficiência.

Além de nos posicionarmos (Haraway, 1995) nesta introdução, apresentamos aqui as condições desse diálogo que se estendeu a um conjunto mais amplo de interlocutores. Todas as falas que compõem o artigo são de pessoas que já conhecíamos das atividades de extensão. 6 A maior parte dos participantes da pesquisa têm em comum a circulação pela universidade. Eles são estudantes, egressos, servidores, professores, familiares e amigos destes. Devido a esse recorte centrado na presença da universidade na vida destes interlocutores, a grande maioria deles possui ensino superior em andamento ou completo. É importante destacar que a UFAL é a única Instituição de Ensino Superior Federal no estado 7 e que essa não é uma experiência cotidiana para a população. 8 Acrescenta-se aí o fato de que esse campus está localizado em meio a bairros periféricos de Maceió, longe das praias turísticas. De um lado, o campus é vizinho ao complexo prisional de segurança máxima. Já na sua outra face, há uma rodovia que o deixa de costas e sem acesso para um dos bairros vizinhos (Santos Dumont), e completamente fechado pelos seus muros para o outro bairro (Graciliano Ramos). A disposição geográfica do campus fala sobre como a universidade se insere na paisagem da capital. Esse isolamento insular também reflete na dificuldade de acesso ao campus, cujo transporte público não prioriza o transporte de estudantes. Não há sequer uma linha universitária na cidade. Todo o serviço de transporte que passa pelo campus segue o fluxo da circulação entre outros bairros. Desse modo, mesmo em curtas distâncias os percursos são longos, em veículos não são climatizados e estão geralmente superlotados.

Sobre as entrevistas, é importante destacar que foram encontros densos, possibilitados por essa relação preexistente, de convivência em sala de aula que foi também produtiva como uma aliança entre os corpos (Butler, 2018) de pessoas com deficiência que até então estavam dispersas na universidade. Inicialmente circulamos um arquivo de áudio via aplicativo de trocas de mensagens, Whatsapp, explicando a intenção de trazer um relato sobre as alterações na rotina em virtude da pandemia de a partir da perspectiva de pessoas com deficiência em Alagoas. O convite foi dirigido a cerca de trinta pessoas e destas, dezesseis se ajustaram às nossas agendas de entrevistas, dividindo conosco um pouco de suas histórias de vida e também de seu cotidiano em face à pandemia.

Quadro 1 - Contextualização dos interlocutores 9
NomeIdadeExpressão de Gênero DeficiênciaCor/Raça ResidênciaOcupação
Aline35FemininaIntelectual NegraCom a mãe e os irmãos Sem ocupação
Agaítalo39MasculinaMotorabrancoCom a mãe; Estudante
Claudionor46MasculinaMotora pardoCom os pais; Técnico em informática
Dolores50FemininaMotora pardaCom a mãe;Professora Universitária
Edna50FemininaMotorabrancaSozinha;Servidora Pública
Elza28Não bináriaVisualnegraResidência UniversitáriaEstudante
Lucas20MasculinaMotorapardoCom a mãe;Estudante
Malta33FemininaVisual negraSozinha;Estudante
M. Aparecida66FemininaCuidadorapardaCom três filhos; Aposentada
Maria Júlia21FemininaIntelectual brancaCom a mãe e o padrasto;Sem ocupação
Maurícia29FemininaCuidadorabrancaCom o marido e o filho;Psicóloga
Nelson40MasculinaVisual negroCom o filho; Servidor Municipal e Estudante C. Sociais
Olga25FemininaAuditivabrancaCom a irmã e sua companheiraEstudante de Jornalismo
Paulo51MasculinaVisual brancoCom a esposa e enteadaAssistente Social
Paulo César42MasculinaMotoranegro Com a esposaPsicólogo
Sófocles 42MasculinaVisual negro Com a esposaAposentado
Suely 37FemininaVisual negraCom a mãe, o padrasto e os irmãosEstudante de Educação Física
Taciana 42FemininaCuidadora brancaCom a filha e marido; Servidora Pública
Wagner 41Masculina MotorabrancoCom a mãe e os sobrinhosAutônomo
Xavier 7MasculinaIntelectual brancoCom a mãe o padrasto; Não se aplica

Os encontros síncronos favoreceram uma aproximação afetiva, aprofundando o interesse mútuo e permitindo diálogo mais simétrico sobre a própria categoria deficiência, em seus efeitos materiais e também na sua acomodação subjetiva para cada um dos interlocutores. Além disso, conceder uma entrevista, contribuir para produção de um artigo para ser divulgado fora do país a partir da experiência da deficiência movimentou, em alguns casos, as relações no interior das própria esfera doméstica. Ao trazer para dentro das casas questões a partir da palavra deficiência, observamos o potencial antropológico desta categoria, que de acordo com Lopes (2019a) está no fato de ela interpelar também aqueles sujeitos que ela não nomeia. Gostaríamos de acrescentar que enquanto ação corporalizada 10 que define sua materialidade apenas através da experiência, ela desestabiliza (ainda que de diferentes maneiras) todos os corpos em suas prescrições de funcionalidades, racionalidades e normalidades.

2. Relatos a partir de uma terra machucada

Terra machucada é o modo como definimos o lugar a partir do qual produzimos estes relatos sobre as alterações de rotina de pessoas com deficiência em meio a pandemia de Covid19 no ano de 2020. Empregamos esse termo a partir da definição de Donna Haraway (2016) 11, pois ele nos permite situar a emergência sanitária tal como ela afeta a rotina dos nossos interlocutores, a partir da integração descritiva de elementos heterogêneos: os desastres ambientais emergentes que afetam a alimentação e a moradia de grande parte da população alagoana, as profundas desigualdades sociais que incidem sobre as condições de cuidado e os ajustes sociotécnicos operados nos corpos e das redes de relações em que os interlocutores estão inseridos. Além disso, é importante destacar o desafio da autora em termos do deslocamento nos objetivos antropocêntricos do fazer científico. 12 Ao invés de identificar e propor soluções aos problemas, elaboramos esse relato como forma de acolher desde a academia a co-responsabilidade de viver em um ambiente machucado e de responder às demandas de reparação frente a acontecimentos devastadores.

Apresentar Maceió-AL como uma terra machucada implica refletir sobre a pandemia de Covid19 interage com outras emergências que afetam a saúde da população em geral e das pessoas com deficiência em específico. É importante destacar que desde 2018 Maceió vivemos um dos maiores conflitos ambientais do país 13, envolvendo a mineradora Brasken e os moradores de cinco bairros da capital, área de risco geológico relacionado à prática da extração de cloreto de sódio. No filme "Subsidência" de Beatriz Vilela e Marcos José 14 é possível apreender um pouco da situação em que se encontra os bairros que estão sendo evacuados em virtude do risco de novos abalos sísmicos. 15 Pesquisadores da região como Freire, Lins e Cavalcanti (2020) defendem que as análises sobre o avanço da pandemia de Covid19 precisam considerar essas outras situações de emergência em curso no estado que ameaçam as condições de habitação, como o deslocamento compulsório da população residente nos bairros que passam pelo "afundamento" em Maceió e também pelo risco de ruptura da barragem de Águas Belas (PE) que afeta cerca de 80 mil pessoas que vivem às margens do rio Ipanema. 16

Entretanto, a previsão técnica desse outro possível deslocamento compulsório da população que vive na região do agreste, assim como aquelas que demonstram o potencial de transmissão do Coronavírus não desencadeia respostas protetivas, tão pouco ações de redução dos danos causados pela tragédia. Tal como observamos em 2019, em face ao desastre ambiental do derramamento de óleo que afetou todo o litoral do nordeste, (mas em especial em Alagoas pela sua capilaridade hidrográfica) os danos ao ecossistema marinho e lagunar e à saúde das populações caiçaras e ribeirinhas são pouco conhecidos. 17 É importante destacar que toda essa tragédia é silenciada, em face da urgência política de construir uma imagem turística de Caribe Brasileiro, que enfatiza as águas quentes e cristalinas.

Como apontaram os autores, tais desastres afetam essencialmente aquelas pessoas que já se encontram em maior situação de vulnerabilidade. Para compreender esse efeito precisamos visualizar a desigualdade social estruturando as condições de vida da população alagoana, o que se expressa de forma mais nítida na capital. Por essa razão trazemos duas referências audiovisuais, produzidas a partir da própria implicação dos habitantes nessas situações. No documentário/ficção de Bruca Teixeira, intitulado "A três andares" 18, podemos ver uma montagem quadro a quadro que divide a tela horizontalmente e contrasta a paisagem dos bairros elitizados e periféricos de Maceió. No documentário "A visão das grotas" 19, de Wéllima Kelly e Wagno Godez, o cotidiano das grotas, tangencialmente transformado pela Covid19 convida a percorrer as escadarias, ruas e ruelas desses bairros que são invisibilizados no imaginário que constitui a capital. Ao convidarmos o leitor a acessar esses materiais, queremos destacar outras narrativas sobre a cidade na qual as experiências de nossos interlocutores têm lugar. Não se trata de recurso estilístico, mas de um necessário ajuste de foco, técnica indispensável para uma aproximação com ambientes que são impactados de maneira desproporcional em situações de crise.

Na sequência do artigo, apresentamos os relatos das pessoas com deficiência e também cuidadores sobre o impacto da pandemia nas condições materiais de existência, resultado da perda de renda individual e/ou familiar. Tentamos destacar as demandas relacionadas à saúde física e psíquica, e alterações em terapêuticas anteriores. Assim como, exploramos o acesso às tecnologias de comunicação, as novas possibilidades e as restrições para a manutenção dos vínculos extra-familiares, como o contato com amigos, participação em mobilizações sociais e em atividades acadêmicas. Não apresentaremos os efeitos diretos das machucaduras acima referidas na vulnerabilização dos corpos de nossos interlocutores. Nosso objetivo, seguindo Gavério (2020), ao articular a deficiência como recurso heurístico para refletir como em face de múltiplas crises (econômica, política, social) alguns corpos se tornam "mais aptos do que outros para passar pela experiência da epidemia". Em síntese o autor nos convoca a:

"colocar em jogo uma certa metodologia deficiente (DOKUMACI, 2018), uma certa metodologia aleijada (MCRUER, 2006), para analisar criticamente, dentro dos contextos latino americanos, como as ideias de normal, anormal, particular, universal, incluído, excluído, público e privado estão se fazendo dentro de uma <gramática epidemiológica>. Uma gramática que também coloca em jogo a ideia da normalização, da "reabilitação", como se o próprio mundo estivesse doente, incapacitado, deficiente e precisando de várias formas de tratamento para se "endireitar", para "voltar a funcionar apropriadamente" (Gavério, 2020: 441)

O paralelo que o autor traça entre a procura de respostas para o mundo pós-pandemia e a forma como a sociedade lida com a deficiência, buscando por resoluções e pela retomada do funcionamento converge com a posição crítica que queremos assumir nesse artigo. Os relatos a seguir exploram as múltiplas realidades da pandemia às quais as experiências de deficiência dos nossos interlocutores se articulam.

3. Rotas acadêmicas alteradas, corpos em mutação com o coronavírus

No dia 25 20 de fevereiro de 2020, foi confirmado o primeiro caso de Sars-Cov2 no Brasil e no dia 03 de março recebemos a notícia da circulação do vírus em Alagoas. 21 Nesse momento, a reitoria da universidade se reuniu com o governo do Estado e, em seguida, recebemos a notícia da suspensão do calendário acadêmico na UFAL. Elza Evangelista que é uma estudante de 27 anos negra, não binária 22 conta que essa resolução acarretou o fechamento da Residência e Restaurante Universitários. Com essa medida, muitos estudantes retornaram a suas cidades de origem no interior de Alagoas ou em outros estados. Porém, houve uma parcela significativa que, como Elza, não tinha para onde voltar e que, caso a residência fechasse seria obrigada a encontrar um trabalho para alugar uma morada. Os estudantes se organizaram e apresentaram formalmente a demanda à pró-reitoria estudantil. Com a manutenção do serviço, ascenderam à condição de proteger a si mesmos do vírus e de estudar, mediante o acesso à internet necessário para realização das atividades da instituição em regime remoto.

Estar vinculado à universidade nesse momento é descrito por João Maurício (seu nome de registro de Elza) como algo vital, por ele ser uma pessoa preta, pobre e para quem (em face da perda da mãe há alguns anos atrás), cuidar da saúde saiu do seu campo de possibilidades. Entendemos que essa conexão é central para retomada de processos interrompidos em sua vida, entre eles a enfermidade ocular. O acompanhamento médico, a criação de estratégias para se manter no mercado artístico como Drag Queen e maquiador, a aproximação com as tecnologias assistivas na formação como docente de sociologia, a apreensão de si mesma enquanto pessoa com deficiência são algumas das retomadas elencadas. Foi uma surpresa saber que as mudanças em curso na vida dessa interlocutora não foram negativamente impactadas pela pandemia. O que sentimos através da conversa, é que as medidas adotadas para convivência com vírus estão sendo acomodadas através do deslocamento na forma como aquilo que ela descreve como perda da visão, era até então corporalizada. 23 A cegueira iminente se materializou através de um conjunto de novas demandas, de adaptações nas formas de aprender e na reconfiguração das relações, incorporando existências e vínculos até então evitadas. Elza, como vários outros alunos que temos na UFAL, nunca falou sobre as dificuldades de visão para a coordenação do curso ou para seus professores. Mas, com a emergência do ensino remoto e o engajamento em atividades de iniciação à docência nesse mesmo regime, ela foi obrigada não apenas a falar sobre essa experiência, mas a buscar alternativas terapêuticas e de acessibilidade para continuar correspondendo às expectativas da instituição.

Um outro relato onde aparecem mudanças positivas na rotina é feito por Claudionor. Ele é um homem pardo, de 46 anos, que teve paralisia cerebral ao nascer e ficou com limitações motoras severas como sequela deste evento. Desde 2015, quando conseguiu sua primeira cadeira motorizada, ele tem maior mobilidade e pode começar a estudar. 24 Ele trabalha prestando serviços de informática, de todos os tipos, desde manutenção de computadores e celulares até demandas de programação. Claudionor, Nádia e Agaítalo nos conhecemos no dia da entrevista por meio desse encontro no ambiente digital. Mas já estavamos em contato antes, por meio de Paulo José, estudante de Licenciatura em Ciências Sociais e amigo de Claudionor, que também participou de parte da entrevista favorecendo a ampliação da escuta dos antropólogos e da fala do interlocutor. Foi um momento de carinho, vivido com muita apreensão de ambas as partes porque já sabiam muitas coisas uns sobre os outros, indiretamente. Era como se já estivessem presentes uns na vida dos outros pelas intermináveis narrativas feitas por Paulo José para falar sobre a UFAL com Claudionor e para explicar para os professores e colegas sobre a genialidade de seu amigo. Foi também um momento privilegiado de encorajamento, em que Agaítalo compartilhou várias aspectos da melhora da sua fala através do tratamento de fonoaudiologia.

Claudionor nos explicou que para ele as medidas de distanciamento físico foram boas porque trouxeram o resto das pessoas para o mundo dele. A transição forçada para o ensino remoto fez com que ele pudesse participar em igualdade de condições ou até de vantagem, em virtude da familiaridade com as ferramentas digitais, numa turma preparatória para o ENEM. Ainda que estivesse animado para chegar na escola com sua nova cadeira, ele enfatiza que se sente mais confortável e mais eficiente para interagir com os colegas e aproveitar os conteúdos no ensino remoto. Levar a sério o que esse interlocutor está nos dizendo envolve habilitar o nosso olhar a reconhecer o capacitismo engendrado no próprio projeto colonizador de educação que fazemos (Noel, 2020).

A experiência de Agaítalo, que em março de 2020 se encontrava na fase de finalização do curso de mestrado, precisa ser pensada na direção inversa. Transcrevemos abaixo um trecho da entrevista que reverbera elementos comuns a outros interlocutores com quem conversamos neste segundo semestre de 2020. No momento estamos os três autores em face da tela, falando de uma situação pessoalmente tensa, que nos afeta diretamente em nossas diferentes posições. Alguns meses antes desse encontro, havia sido pautado o desligamento do curso de Antropologia daqueles alunos que mesmo após uma extensão do prazo, não finalizaram o trabalho. 25 Quando lhe perguntamos sobre o que deixou de fazer durante a pandemia, Agaítalo conta como foi assumir todas as providências de manutenção da casa, sobre as brigas com a mãe que não aceitava as medidas protetivas e também as dificuldades com a irmã, que insistia em fazer visitas, trazendo os netos. Segundo ele, tudo isso dificultou a manutenção do ritmo de escrita que o curso de mestrado impõe para a defesa da dissertação:

A situação da pandemia foi terrível. Eu estava já na etapa final do mestrado, chegando no finalzinho mesmo, embora não tivesse noção do quanto eu já tinha feito. Quando chegou a pandemia eu fiquei maluco, completamente maluco. Porque, como eu moro com a minha mãe que está no grupo de risco por ser mais velha, ela tem 71 anos, eu pensei: Meu Deus, se eu pegar essa doença miserável [eu tenho medo disso até hoje] se eu pegar essa doença e passar para a minha mãe, eu nunca mais vou poder respirar. Porque assim, eu saber que eu matei a minha mãe, que eu matei a pessoa que eu mais amo e que é a única que me ama (pausa). Só de pensar nisso, me matava por dentro. Foi nessa hora que eu precisei do psicólogo porque eu não conseguia fazer nada, não conseguia ler, escrever nada (….) Qualquer pessoa que viesse aqui na minha casa eu não deixava entrar e metia álcool em tudo, fui grosso com várias pessoas, fiquei na frente da porta e não deixei entrar porque tinha medo que pudesse passar a doença para a minha mãe. Eu não sei como eu não fiquei doido de internar. Então o mestrado, a dissertação era a última coisa que eu pensava. Juro a vocês, eu nem pensei que tinha mestrado não, o que eu queria era preservar a vida da minha mãe (entrevista com Agaítalo3, 12/11/2020).

Nesse trecho percebemos o impacto na saúde mental, a necessidade de assumir a responsabilidade do cuidado pelo outro, o medo do vírus e o horror diante da possibilidade de perder seus entes queridos, a busca por ajuda e a necessidade de estabelecer prioridades. Da mesma forma, outros interlocutores descreveram as mudanças na sua rotina a partir de um reposicionamento nas dinâmicas familiares, especialmente em face de responsabilidade ainda não experimentada de atuar como cuidadores e até mesmo provedor de auxílio para outros membros de sua família.

Nelson, como Agaítalo também teve que assumir novas atribuições, especificamente as domésticas que antes eram desempenhadas apenas pela esposa. Ele é um homem negro de 40 anos, que está finalizando sua segunda graduação e tem baixa visão. Trabalha numa escola municipal na cidade de São José da Lage no interior de Alagoas, que está fechada desde o início da pandemia. Nossa conversa acontece num momento em que ele acomoda mudanças drásticas na sua rotina: a separação da esposa com quem esteve casado por quase vinte anos e a mudança para Maceió, junto com o filho adolescente. Ele considera que a pandemia não causou, mas precipitou o fim do relacionamento, pelos conflitos decorrentes da intensificação da convivência.

Dedicar-se aos estudos para finalizar a graduação neste período de ensino remoto também tem sido um grande desafio. Em parte pela instabilidade emocional engendrada pela própria experiência da separação, mas também porque as condições institucionais de acessibilidade foram alteradas. O Núcleo de Acessibilidade que lhe prestava assistência através da impressão ampliada dos textos ou mesmo do suporte de um estudante voluntário que lhe ajudasse com as leituras já não pode mais atendê-lo a contento. As novas opções de tecnologias assistivas para leitura e escrita que lhe são oferecidas trazem desafios de adaptações que são incompatíveis com a sua determinação e manter ativa o que lhe resta de capacidade visual. Nelson quer escrever o próprio TCC, mesmo que para isso ele precise passar meses "esfregando a cara na tela". Aparentemente essa prática que lhe causa muita dor, na cabeça e novas lesões nas costas pela postura inclinada sobre o computador. Mas essa dor ele já está acostumado a manejar, ele não se sente humilhado por elas como acontece com as demandas de adaptação na leitura e na escrita que atualmente a universidade lhe impõe.

Outros dois interlocutores descrevem perdas com a interrupção das atividades presenciais na universidade. É o caso de Lucas, um rapaz pardo, de 20 anos de idade, estudante do curso de Ciências Sociais. Ele é cadeirante, ativista do movimento estudantil e mora num bairro popular contíguo à universidade, junto com sua mãe. Apesar da proximidade geográfica, a locomoção até o campus no horário da noite, turno em que ele tem a maior parte das disciplinas, sempre se apresentou com um grande desafio. Para acessar um ônibus ( que esteja equipado com entrada lateral) que entre na universidade ele precisa percorrer uma estrada de chão batido, atravessar duas pistas de alta velocidade e aguardar longos intervalos de tempo. Quando chega ao campus ele precisa empurrar a cadeira de rodas por um trecho extenso, inclinado e irregular de calçadas até chegar ao Instituto de Ciências Sociais.

Para ele, estar na universidade importa pelo convívio com outras pessoas além do seu círculo familiar, pelo desenvolvimento de afinidades estéticas e políticas com pessoas de sua idade, um espaço de descoberta e a possibilidade de expressão da sexualidade. Mesmo com condições razoáveis de acesso à internet na residência e também na casa dos patrões de sua mãe (que ele frequenta com regularidade) e fazendo um uso eficiente das ferramentas digitais, ele não se sente motivado para estudar. Na conversa ele explica que sente muita falta dos amigos, pois ainda que estejam com contato, as possibilidades de interação foram completamente alteradas. Fala que prefere dedicar seu tempo e sua disposição corporal numa atividade relacionada ao curso que traz alguma remuneração. Ele também conta que desde o início da pandemia tem tido muitas dificuldades para acessar os medicamentos de que faz uso regular e o acompanhamento médico que ele fazia fora do estado com suporte do governo municipal.

Suely, que está no último semestre de educação física de uma faculdade privada, também destaca a falta que sente da proximidade física das pessoas e das instalações disponíveis em sua instituição. Aos 37 anos, ela não tem a mesma desenvoltura nas interações pela web que Lucas e, definitivamente, não se adaptou ao ensino remoto. Em parte, porque o fato de ela ter baixa visão adiciona novas camadas de necessidade às adaptações em curso na instituição. Ao refletir sobre as dificuldades na escrita do trabalho final, ela destaca que ainda está aprendendo essa forma de escrita acadêmica com citações e referências, e também se adaptando aos recursos de edição de texto, que ainda não estão adaptados às suas necessidades. Com a restrição das possibilidades de interação corporal junto aos técnicos da instituição e principalmente aos colegas, que lhe auxiliam na realização dos trabalhos e incentivam a superar inúmeros desafios, ela se sente sozinha e perdida. Não que tivesse perdido o contato com eles, pelo contrário, ela conta que eles tem lhe apoiado nessa adaptação às plataformas digitais de aprendizagem. Porém, o barulho das movimentações comerciais da vizinhança, e a ocupação dos cômodos da casa pelos familiares ao longo do dia, associada ao distanciamento dos mesmos em relação às suas escolhas de escolarização faz com que estudar em casa não seja produtivo.

Para entendermos essa dificuldade, é preciso considerar sua inserção numa família de classe popular, negra, migrante da zona rural do estado. É preciso ouvir sobre sua trajetória autônoma de escolarização, "batendo de porta em porta" em todas as escolas do bairro até encontrar uma que lhe aceitasse. Em sua narrativa, não aparecem pai, mãe ou irmãos que lhe acompanharam nessa jornada. Suas condições de estudo nunca estiveram dentro de casa. É através dos vínculos de afeto que ela estabelece com professores, funcionários, colegas que concluir o TCC, viver uma formatura, se tornam conquistas a serem celebradas.

Todos esses interlocutores tiveram suas rotas acadêmicas significativamente alteradas durante a pandemia do Covid19, assim como vários outros estudantes cuja trajetória não foi até o momento perpassada pela deficiência. Essas mudanças na rotina operam também um deslocamento na corporalização da deficiência, ou seja, nas propriedades que performam e nos contornos que seus corpos materializam. Performar a doença ocular se torna possível para Elza mediante a uma realidade em que o serviço de saúde está minimamente acessível. Habitar de forma consistente o mesmo ambiente que outras pessoas que se preparam para tentar uma vaga na universidade só tornou possível para Claudionor pela emergência do ensino remoto. Experimentar o reconhecimento como PCD ainda é uma uma experiência assustadora e vivida com discrição por Agaítalo. Audiolivros, ferramentas de comando de voz não são tecnologia assistivas quando a prioridade é de Nelson é exercitar a visão o máximo possível. Não circular no campus e na cidade em sua cadeira de rodas (junto a outras pessoas da sua faixa etária), não colocar seu corpo na rua para se posicionar politicamente, para dividir angústias e fazer amizades é desaparecer na invisibilidade da deficiência para Lucas. Para Suely, ter um diploma e aprender uma profissão através da universidade é uma conquista que não tem sabor quando se volta a ser apenas uma pessoa que, com seu benefício, já ajuda a manter a família.

Sustentamos essa análise na mútua constituição entre os seres e as materialidades tal como é definida por Mol e Low (1994) a partir dos estudos da ciência e tecnologia. Eles definem a materialidade como processo relacional, fazendo o questionamento acerca de como as diferenças entre as propriedades da matéria são medidas. Nesse sentido, aspectos como a durabilidade e a maleabilidade não são intrínsecos a determinados materiais e sim efeitos da uma interação contínua com humanos e não humanos, através de práticas que são plurais. Com base nessa apreensão, propomos circundar as narrativas da deficiência que vêm sendo capturadas através da oposição entre apreensão médica versus uma teoria social da deficiência. Endossamos a crítica feita por Mol (2008) ao construtivismo e ao perspectivismo para defender o caráter aberto e contestado da realidade da deficiência, e especialmente a interferência mútua entre essas duas narrativas. Então, nosso objetivo não é aprofundar uma ou ambas leituras, em um esforço crítico e nem buscar uma nova síntese do debate. Nosso objetivo, através desse esforço colaborativo de manutenção de vínculos é experimentar junto às pessoas com deficiência e cuidadores as múltiplas realidades em que a pandemia de Covid19 é vivida no nordeste brasileiro.

4. Deficiência como expressão de Simpoiese

Haraway inicia sua argumentação sobre a simpoiese explicando que o conceito tem uma definição muito simples - "making-with", que podemos traduzir por "fazer-junto" ou "fazer-com". No entanto, para compreendermos sua aplicação, ela nos convida a mergulhar no mundo em que os cientistas da vida disputam sobre modos de existência definidos como holobiontes, "seres inteiros" ou "seres sãos e salvos" (Haraway, 2016, p. 60). Ao apresentar uma crítica à autogênese, ela nos conduz pelas múltiplas montagens e variadas dinâmicas de interação em que os holobiontes se conectam, digerem, assimilam e transformam uns aos outros. Nos termos da microbiologia ela coloca em questão a percepção das "unidades" e dos "seres" a partir de referências de auto-suficiência e individualidade. Em produções anteriores (Meinerz, 2010: 125-126) é explorada a centralidade das redes de suporte e assistência nas experiências sexuais e parentais de pessoas com deficiência. Retomando o diálogo com um artigo co-produzido entre uma pessoas com deficiência intelectual e um pesquisador (Strike e McConnel, 2002), enfatizamos o desafio de "fazer com" na prestação de serviços, nas relações de cuidado dirigidas às pessoas com deficiência e na própria escrita acadêmica. Essa ação demanda uma ruptura com a assimetria pressuposta entre sujeitos e objetos de pesquisa, beneficiários e prestadores de assistências e suportes essenciais à vida.

Nos apoiamos na noção de simpoiese para argumentar que a experiência da deficiência interpela a auto-gênese no interior das narrativas sobre a humanidade e sobre a sociedade. As pessoas com deficiência não podem ocultar seu acoplamento a diferentes tecnologias assistivas e sua demanda por ajudas técnicas, nem a interdependência em relação aos outros humanos. Nosso argumento é que elas evidenciam a simbiogênese que a corpornormatividade (Mello, 2016) também definida como ideologia morfonormalista (Dias, 2020) oculta. Os relatos que apresentamos a seguir também evidenciam alterações significativas no cotidiano, que serão acolhidas a partir de atitudes eficientes de reorganização e de intensificação do engajamento em face da multiplicação e a complexificação das demandas. Essa capacidade de responder, ou "respons-ability" (preservando a montagens de palavras que a autora opera na língua inglesa) revela tessituras delicadas feitas de materiais heterogêneos, através de amarrações muito precisas. Os relatos que traremos a seguir falam sobre o engajamento numa operação de resistência que não está ancorada em nenhuma promessa de sucesso, segurança ou salvação.

O primeiro relato é de Dolores, uma mulher branca, de 50 anos que vive com tetraparesia. Ela nos explica que embora tenha força, não tem amplitude de movimentos nem nos braços e nem nas pernas. Professora da área de educação infantil, ela costuma circular por toda universidade na cadeira motorizada e é muito atuante na capacitação de docentes e técnicos, ministrando cursos de acessibilidade e tecnologias assistivas regularmente. De origem paulista, ela decidiu migrar para Maceió após aprovação no concurso em 2015 em virtude do emprego, mas também porque uma significativa parte de sua família, que não migrou para o sudeste décadas atrás, vive aqui. É importante destacar que embora hoje ela faça parte de uma classe média, sua origem é muito humilde e ela sempre precisou trabalhar para poder estudar, mesmo convivendo com a deficiência desde a infância. Na entrevista, ela detalha as causas e os desdobramentos da sua condição adquirida, destacando inúmeras decisões em que viver (no sentido de realizar desejos e assumir os riscos das experiências que lhe são caras) foi priorizado em detrimento de tratar. Perto do câncer que ela enfrenta sem terapia química, o coronavírus é apenas mais uma variável no cálculo das circunstâncias que podem lhe afetar de maneira decisiva.

Durante a pandemia ela precisará realizar uma cirurgia de substituição do maxilar, procedimento que envolve uma exposição inevitável ao vírus, no deslocamento interestadual para várias etapas/consultas com médicos ultraespecializados em São Paulo. É importante considerar que ela viaja acompanhada da mãe (que a partir da pandemia passou necessitar de apoio para manter o distanciamento físico) e também da assistente pessoal. É sobre esse corpo estendido que às medidas protetivas estão sendo incorporadas: evitar aglomerações, usar máscaras, higienizar as mãos e as superfícies com álcool em gel, manter o distanciamento em relação aos familiares que lhe esperam na cidade natal. Além disso, quando conversamos ela se preparava para assumir a coordenação do curso de Pós-Graduação em Educação, um dos mais importantes da universidade. Otimista e sem medo dos desafios que se apresentam na gestão acadêmica, ela abraça com serenidade um conjunto de responsabilidades que a maior parte dos colegas procura desviar, especialmente nesse momento. Como quem já está muito acostumada a viver em meio a turbulências, ela olha para frente e faz planos de afastamento para o pós-doutorado, tão logo conclua seu tempo na gestão.

Essa capacidade de suscitar respostas potentes em face à suscetibilidade e à multiplicação de demandas, aparece também em outros relatos sobre o transcorrer deste ano. Como no relato de Paulo Cesar, um homem negro de 42 anos de idade, psicólogo recém graduado e presidente da Associação dos Hemofílicos de Alagoas. Junto com a formatura no início de 2020 veio a oficialização do casamento, o primeiro emprego e a saída da casa dos pais e do bairro que ele viveu durante toda a sua vida. Segundo ele, todas essas coisas que aconteceram antes da pandemia já estavam planejadas e foram cuidadosamente organizadas. Conforme constatamos em sua animação durante a conversa, ele vive um momento de grande satisfação mesmo em meio a uma situação muito difícil. É importante destacar que além da hemofilia, Paulo Cesar ficou paraplégico depois de um procedimento médico mal sucedido durante os inúmeros exames que antecederam seu diagnóstico.

Como o emprego na clínica de reabilitação fica num bairro distante da casa dos pais, ele optou por alugar uma casa próximo do trabalho, que lhe permitisse não depender do transporte coletivo. A moradia em que iniciou sua vida conjugal virou também o espaço de prática das suas terapias físicas e de armazenamento da medicação a ser utilizada para manejar a hemofilia, porque às instalações do serviço que fornecia o medicamento foram remanejadas no hospital em virtude do Covid19. No trabalho, as demandas pelo cumprimento das metas para manutenção dos recursos que a clínica recebe do Sistema Único de Saúde se impõe e ele está na linha de frente da retomada dos atendimentos presenciais. Além de psicólogo ele atua diretamente no atendimento ao público, trabalhando apenas com as condições de segurança que ele é capaz de prover. A preocupação com uma possível infecção pelo vírus, se desloca aqui para uma atuação delicada de ponderação entre os riscos para si, para os outros pacientes e os prejuízos à saúde física e mental decorrente do prolongamento da descontinuidade nas terapias prestadas pela clínica para pessoas com deficiência.

Outro relato na mesma direção é compartilhado por Malta, uma mulher lésbica e negra de 32 anos, que ingressou em 2020 no curso de psicologia da UFAL. Ela não fala muito sobre as circunstâncias que desencadearam a perda da visão porque Nádia já presenciou em outros momentos essa partilha. O fato de viver no mesmo bairro de Agaítalo também lhe motiva a explorar os limites cotidianos de acessibilidade e sua atitude em face à exclusão nas interações sociais. Nos emocionamos os três com o aprendizado de formas mais eficientes de encaramento. Malta teve coronavírus e ficou internada no hospital durante uma semana, tendo uma rápida recuperação apesar da sua diabetes que favorece o agravamento da doença. Atenta a todos os movimentos que transcorreram em sua casa desde o início das medidas de distanciamento físico, ela consegue precisar a circunstância exata em que foi infectada. Depois da alta, atendendo a um apelo de sua família foi finalizar a recuperação em uma pousada que mãe e o padrasto administram no litoral norte do estado. A decisão de morar sozinha na capital, sendo uma mulher com baixa visão é motivo de grande aflição para seus familiares que gostariam que ela vivesse mais próxima deles.

Ela não expressa raiva quando fala da incapacidade que seus familiares lhe atribuem. Apenas a satisfação de retomar o contato com os amigos do Instituto Cyro Accioly para pessoas cegas e com baixa visão, de dedicar-se a adaptação ao ensino remoto do curso que acabou de ingressar, e principalmente de estar em sua casa com seus animais de estimação. Ainda que não seja possível o convívio no cotidiano das instituições (UFAL e Cyro Accioly) e que estar sozinha em casa lhe traga dificuldades de atender as demandas acadêmicas e possa até, algumas vezes, lhe colocar em risco, sentimos a força de quem abraça uma nova vida com a cegueira, que é sua e também compartilhada nessas novas redes sócio-técnicas nas quais está se engajando.

Por fim, Maurícia nos provoca a refletir sobre a visibilidade da simbiogênese nos corpos sobre os quais a deficiência se estende. Ela é uma mulher branca de 29 anos, também psicóloga e mãe de Xavier - um menino de 07 anos que tem autismo. Conversamos longamente sobre o adoecimento psíquico que ela viveu nos primeiros anos após o diagnóstico de autismo, quando o filho tinha dois anos. Também sobre todo o investimento que ela fez para estudar sobre essa condição, para trazer as informações necessárias para o diálogo com médicos, psicólogos e pedagogos. E de forma particularmente inspiradora para Nádia e Débora, sobre o trabalho cotidiano de discernir pra si e para pessoas a sua volta, em relação ao comportamento do seu filho, "o que é do autismo e o que é da criança". A principal mudança na sua rotina foi a necessidade de mudar do apartamento onde vivia com o filho, o atual companheiro, três cachorros e dois gatos para uma casa onde pudessem ter mais espaço para adaptar as demandas de trabalho e de cuidado.

Todos podem conhecer Maurícia através como influenciadora digital que produz conteúdo para empoderar outros cuidadores de pessoas com autismo. Ela tem uma marca, também utilizada no perfil do Instagran, a "Mundo Inclusão" que produz diferentes acessórios (camisetas, mochilas, adesivos, etc) para favorecer a identificação da pessoa com deficiência intelectual e do/com seu cuidador através de símbolos positivos. Sua militância não se resume ao ambiente digital e à prática comercial. Maurícia também atua em todas as instituições que percorre junto com o filho em busca do reconhecimento dos seus direitos como pessoa com deficiência. Enquanto Xavier faz as terapias que necessita, ela ocupa o espaço da sala de espera para organizar e conversar com os outros cuidadores sobre eles mesmos e sobre como/onde podem buscar de cuidado para si mesmo. Sua atenção atualmente está direcionada para o diálogo com a escola pública, que aceitou a matrícula, mas não atendeu a nenhuma das demandas de adaptação para receber crianças com autismo.

Esses relatos possibilitam uma descrição das diferentes formas de materialização da deficiência, durante a pandemia de Covid19, a partir dessa terra machucada que é o estado de Alagoas. Jogar luz sobre rotas alteradas e circunstâncias favoráveis à adaptação, explorando a flexibilidade da matéria não significa que estejamos indiferentes aos contornos mais duráveis dessa experiência. Para encerrar o artigo, exploramos relatos de outra natureza, que possibilitam uma ampliação das possibilidades de diálogo sobre as alterações de rotina.

5. O distanciamento físico como realidade da deficiência

Nessa última sessão abordamos uma interpelação que foi apresentada por uma interlocutora, como resposta ao convite para participar da pesquisa. Edna é uma mulher branca, colega de trabalho de Nádia e Débora, e amiga de infância da irmã de Agaítalo. Ela anda com o auxílio de duas muletas (que tem nome de Berenice). Aos 50 anos ela mora só, num apartamento localizado nas imediações de um shopping center na parte alta da cidade, próximo da UFAL. Já no primeiro contato ela afirma que não houveram mudanças significativas na sua rotina. Mostrando-se ao mesmo tempo interessada em contribuir e crítica em relação ao nosso ponto de partida, ela alerta sobre as armadilhas da percepção de que o distanciamento físico como medida para redução da velocidade da infecção pela Covid19 traga uma nova realidade para pessoas com deficiência. Durante a conversa, destaca que mesmo antes da pandemia já tinha uma rotina organizada a partir dos percursos que separam o trabalho e a casa. E explica que embora tenha várias amigas, os encontros presenciais com eles são menos frequentes hoje em dia porque suas vidas tomaram rumos diferentes.

Ironicamente, participar do carnaval de 2020, lhe fez reviver o interesse pelo contato físico com outras pessoas, fora do seu círculo de relações familiares ou de trabalho. Divertir-se no carnaval foi uma manobra de alta complexidade e que trouxe à tona intenções das quais ela se via afastada. Essa ampliação de perspectivas, precisa ser entendida em face da incorporação do trabalho no interior do seu ambiente privado e da perda da convivência cotidiana no ambiente universitário. No interior da residência, as atividades de trabalho não apenas se ampliaram no tempo como desconfiguraram o espaço, para abrigar o escritório. Avaliando as inúmeras adaptações feitas na rotina de sua residência e no interior das próprias relações familiares, Edna vem amadurecendo formas de transformar essa nova relação com trabalho que passou a estar presente 7 dias por semana, 24 horas por dia através do aparelho de celular. Esse alerta, nos fez olhar com mais atenção para todos aqueles interlocutores que não indicaram alterações significativas em suas rotinas.

O relato de Sófocles têm essa tônica, de perceber que o impacto da pandemia em sua vida foi pequeno uma vez que ele já tem uma rotina mais caseira. Ele é um homem negro de 46 anos, casado que recebe aposentadoria do INSS porque aos 26 anos ficou cego, segundo sua explicação, através de uma infecção bacteriana nos olhos. Conta que está com dificuldade para fazer o acompanhamento médico para limpeza das lentes de contato que precisa ser feita a cada dois anos. O procedimento está atrasado, ainda não tem data para ser realizado, mas ele parece confiante de que em breve será convocado em sua unidade básica de saúde. O que torna sua experiência interessante para essa reflexão é que ele foi uma das únicas pessoas de sua família que não perdeu renda devido às medidas de distanciamento físico. Segundo suas contas, os irmãos que trabalham como autônomos tiveram seu ganho mensal significativamente reduzido e também a esposa que trabalha como professora da educação básica, foi dispensada de um dos dois empregos tendo perdido metade da sua remuneração. O sentimento de tranquilidade que ele nos passa se deve em parte ao fato de ele e a esposa terem uma vida modesta num bairro de classe média baixa, sem filhos e com despesas que podem ser minimamente asseguradas pela sua capacidade de assumir o papel de provedor.

De forma semelhante se posiciona Paulo, um homem branco, de 40 anos, recém formado no curso de Serviço Social e que vive atualmente o seu segundo casamento. Amigo íntimo de Sófocles, ele também tem baixa visão e mora na mesma região, junto com a esposa e a enteada (que é quem dá suporte à nossa aproximação digital). Ele também comenta sobre a perda de renda de seus irmãos e aprofunda a reflexão a partir de sua leitura sociológica sobre a pandemia. Pondera que essa perda de renda não coloca em risco a sobrevivência material dos familiares. Criticando a prioridade dada aos ganhos materiais em face da perda de vidas e de empregos durante a pandemia, ele destaca que há muitas pessoas que estão furando as medidas restritivas porque simplesmente se recusam a viver com um pouco menos. Em relação ao impacto na sua rotina, ele explica que a pandemia só intensificou uma dificuldade que ele já sentia antes de sair na rua, entre outras coisas porque diferente do amigo Sófocles, Paulo não usa bengala fora de casa. Sua justificativa para isso nos ajuda a pensar numa eficiência técnica relativa de artefatos que são centrais para locomoção de pessoas cegas ou com baixa visão. Paulo percebe o bairro em que vive como um sendo extremamente violento. Assim, quando precisa sair sozinho ele prefere não usar bengala para não demonstrar que é deficiente visual. Esse instrumento que na maior parte do tempo lhe empodera, também reforça o medo de ser assaltado ou de ser seguido até em casa e roubado,

Para Maria Aparecida que é mãe adotiva e cuidadora de Aline, o distanciamento físico já vinha sendo experimentado como sinônimo de isolamento antes da pandemia. Ela é uma mulher parda, de 66 anos que trabalhou durante toda sua vida no interior do estado na administração de usinas de cana de açúcar. Cida, como prefere ser chamada é mãe de cinco filhos (3 adotivos e 2 biológicos), atualmente ela está aposentada, vivendo na capital e experimentando de forma mais intensa as demandas de cuidado com sua filha mais velha. Aline, é uma mulher negra de 35 anos que tem autismo. É interessante situar que o cuidado com a filha sempre esteve presente no cotidiano de Cida, porém de forma diferente pois era mais compartilhado pelos outros filhos, companheiros e empregadas domésticas enquanto ela trabalhava fora. Ela conta que muitos dos seus vínculos afetivos já haviam se reconfigurado em relação a impossibilidade do convívio no cotidiano em virtude da mudança de cidade. Então falar com as pessoas através de mensagens de Whatsapp já fazia parte da rotina especialmente junto às poucas pessoas que ela considera amigas de verdade.

Entretanto, é preciso destacar que não são muitas essas pessoas que contam como "mais chegadas". Cida, como prefere ser chamada, transparece a saudades que sente de algumas amigas que, segundo ela, são como se fossem da sua família porque efetivamente aceitam a presença da filha em suas vidas, porque se preocupam com ela e acolhem as formas de convívio que ela oferece. Também é importante destacar que as restrições de circulação no espaço público e o risco relacionado a algumas práticas intensificam outros tipos de prejuízo. Nesse sentido, Cida conta como ela e Aline se sentem das caminhadas pelo bairro no final da tarde. Elas saíam juntas todos os dias, para se exercitar e interagir com outras pessoas, animais e plantas na vizinhança. Tiveram que interromper essa prática em virtude do risco de contágio por coronavírus através das gotículas de saliva expelidas pelo esforço físico. Também porque a excitação da filha nesses momentos de expansão é um tanto quanto contraditória com a atitude austera de quem se aventura a andar pelo bairro de classe média nesses tempos.

A terceira mãe/cuidadora que entrevistamos também traz o isolamento como principal desafio desse período. Mas ela não está falando da mesma coisa que Cida. Taciana é uma mulher branca, de 42 anos, casada, funcionária do judiciário e mãe de Maria Júlia que tem 21 anos. Ela nos traz a falta de sair para rua, de ver os amigos, de visitar os familiares e também o medo de ficar doente e morrer se for contaminada pelo Coronavírus como gatilhos para um processo de adoecimento psíquico. É inusitado que ela esteja vivendo isso e não a filha que já vinha de muitas crises emocionais e afetivas anos anteriores, relacionadas, de acordo com a leitura de Taciana com a finalização do ciclo no ensino médio. É interessante destacar que o percurso pelas escolas regulares da capital foi bastante diferente do de Cida (que criou sua filha no interior e foi convidada a se retirar da única escola da cidade). Maria Júlia mesmo tendo dificuldades de aprendizagem, como sequela de uma paralisia cerebral durante o parto, sempre esteve vinculada ao ensino regular nas melhores escolas da cidade, mesmo encontrando resistência em algumas instituições. Apenas no último ano do ensino médio que ela começou a frequentar a Pestalozzi, uma instituição que presta serviços de reabilitação e educação especial. Foi lá que conheceu o namorado, que também é uma pessoa com deficiência, e com quem ela passa boa parte do tempo, seja presencialmente nos dias que o namorado tem autorização para visitá-la no apartamento onde vivem, seja através do celular. Profundamente engajada em sua própria vida afetiva, Júlia demanda muito menos atenção de sua mãe e passou o ano inteiro de pandemia sem ter nenhuma crise. Em suma, é necessário estar atento a esses diferentes contornos que o isolamento social pode assumir.

Ao mesmo tempo, é necessário destacar que a realidade do distanciamento físico não é compartilhada por alguns interlocutores, como acontece com Wagner, por exemplo. Enquanto homem branco, cadeirante e militante da causa deficiência em Alagoas, andar numa cadeira de rodas nunca foi limitação para o convívio social. Embora ele tenha voltado a morar com a mãe aos 41 anos de idade durante a pandemia, sua narrativa nos interpela com mesma naturalidade com que apresenta vários planos em andamento na sua vida pessoal. Ele explica que está diminuindo as demandas de trabalho, que pretende se casar em breve, e apresenta uma lista as providências para voltar a morar em sua casa, uma vez que as dificuldades financeiras da mãe estejam resolvidas. Além disso destaca sua familiaridade com as medidas de profilaxia contra o coronavírus. Lavar as mãos com frequência, usar álcool em gel, luvas cirúrgicas já fazem parte das práticas de autocuidado, numa experiência muito valorizada de manejo independente da própria deficiência.

O mesmo se observa no relato de Olga, uma mulher branca de 24 anos, surda oralizada e usuária de aparelho auditivo. Na sua narrativa, as situações de preconceito vividas na escola, a perda do pai e as dificuldades em face da associação entre as dificuldades de audição e o estrabismo são contrabalançadas com um importante suporte socioeconômico e afetivo da família. Mesmo considerando as limitações de ter crescido do interior do estado, o engajamento da mãe e dos irmãos lhe possibilitaram acesso à cirurgia corretiva, ao acompanhamento médico da surdez e a experimentação de diferentes tecnologias assistivas. Em virtude do vínculo que ela mantém com a fonoaudióloga da ADEFAL(Associação dos Deficientes Físicos de Alagoas) ela tem acesso ao aparelho auditivo e tambeḿ outros recursos como o aparelho de recepção e transmissão através do qual ela se acopla aos professores, conseguindo ouvi-los com a mesma qualidade mesmo quando eles estão de costas, distantes ou se movimentando na sala de aula.

É importante destacar o vínculo de Olga com seus familiares, que não apenas lhe dão suporte material, mas também contatos que favorecem a sua inserção no mercado de trabalho. Durante a pandemia, Olga esteve fortemente engajada no redirecionamento da atuação artística da irmã, que é cantora e realiza shows infantis, para o ambiente digital. Além disso, ela explica que o ensino remoto trouxe grandes desafios, especialmente porque algumas atividades práticas do curso de Publicidade e Propaganda, na faculdade privada onde ela estuda, foram mantidas presencialmente. Durante a entrevista, ela detalha as dificuldades superadas em cada uma das disciplinas cursadas, especialmente no que tange a realização de trabalhos coletivos, à compreensão e à participação em reuniões e aulas pelas plataformas digitais. Curiosamente, a única disciplina que ela reprovou no primeiro semestre foi aquela em que a avaliação foi feita presencialmente mediante a organização do distanciamento no espaço do laboratório e o uso de máscaras, o que lhe impedia ao mesmo tempo de captar o som e ler os lábios dos instrutores.

Para aproximar relatos tão heterogêneos, mantendo nosso foco na materialidade da deficiência, propomos uma análise interseccional inspirada em Mara Viveros (2015 e 2018). Enfocando a variabilidade nas relações de poder entre sujeitos que na "Nossa América" precisam ser posicionados em termos de raça, gênero e classe social, ela nos ajuda a complexificar o modo como as pessoas com as pessoas com deficiência se tornam mais ou menos aptas para atravessar esse período. Procuramos, ao longo de todo artigo, explicitar esses elementos pois consideramos que eles tornam a experiência da deficiência corporalmente específica. Nessa última parte, apresentamos alguns relatos no quais as restrições que o distanciamento físico impõe são percebidas como uma realidade já bem conhecida, com a qual alguns corpos estão mais habilitados a romper do que outros.

Concluímos esse artigo destacando que a forma de organização dos relatos não deve ser confundida com qualquer intenção classificatória. Os eixos analíticos a partir dos quais aprofundamos a descrição das diferentes realidades da pandemia são peças móveis. Se deslocam a partir do recorte de outros elementos nas narrativas biográficas, de outros intervalos espaçotemporais que possam ser pensados e compartilhados, e a partir da sua apreensão em relação a outras experiências. O deslocamento na corporalização da deficiência, a eficiência em se acoplar a outros seres humanos, animais e técnicas, e a desigualdade nas condições de cuidado que observamos ao cruzar raça, gênero e classe são alguns apontamentos abstraídos a partir de uma interlocução que pretendemos seguir nutrindo como forma de nos posicionarmos enquanto universidade, dividindo a responsabilidade de habitar a mesma terra machucada.

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Endnotes

  1. Eu sou autor e participante da pesquisa que dá origem a esse artigo. Minhas colaborações como participante estão identificadas nominalmente, assim como a fala de todos as demais pessoas com deficiência e cuidadores. Essa escolha responde a um compromisso ético e político de dar visibilidade à sua contribuição na elaboração deste relato etnográfico. Foi pactuado com todos os participantes uma modalidade de consentimento individual e posterior à apresentação da versão final deste artigo e do seu assentimento em relação à forma e ao teor de todas as informações publicizadas. Esse tipo de registro de consentimento está previsto na Resolução CEP/Conep 510 de 2016.
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  2. A identificação da violência como causa das limitações corporais/sensoriais perpassa as conversas estabelecidas com outras duas pessoas com deficiência (um total de 3 entre 16). Wagner que ficou paraplégico depois de levar um tiro durante um assalto e Malta que perdeu a visão depois de um episódio de assédio sexual e moral. A análise dessas experiências singulares impõe maior contextualização do estado de Alagoas a partir dos registros de violência relacionados à intolerância religiosa (Amorin, 2016; Rafael, 2012; Dias, 2019) à homofobia (Nunes, 2018; Ferreira, 2020), ao racismo estrutural (Lindoso, 2005; Santana, 2017) à violência contra as mulheres (Mesquita, 2016; Mesquita et al, 2020), e aos conflitos agrários, resultantes das demandas de regularização de territórios indígenas e quilombolas (Silva, 2020; Silva, W F, 2020) o que foge ao escopo deste artigo.
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  3. Em sua argumentação sobre a deficiência como categoria chave para pensar questões sobre o sul global, Pedro Lopes explora esse tipo de experiência a partir da conformação do movimento de pessoas com deficiência na África do Sul (Lopes, 2019b)
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  4. A política de cotas para pessoas com deficiência na pós-graduação teve início no ano de 2017 enquanto que no nível da graduação o sistema foi aprovado e entra em vigor em 2021.
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  5. A disciplina eletiva Políticas da Deficiência foi organizada a partir na noção de "comunidade de aprendizado" de bell hooks (2013) onde às vivências dos sujeitos, o reconhecimento como Pessoas com Deficiência (PCD), os impasses relacionados à promoção da acessibilidade em ambientes com várias deficiências, as demandas emocionais, discussões sobre direitos se articularam com as sugestões de leitura. A disciplina foi aberta não apenas para estudantes da graduação, mas especialmente para pessoas com deficiência da comunidade e ativistas.
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  6. O projeto de extensão no qual autores e interlocutores deste artigo estão engajados se chama "É preciso falar em Capacitismo na UFAL" está em curso desde 2019. Ele tem como objetivo desenhar espaços para interações corporalmente heterogêneas através de ações que favoreçam a ampliação da presença de pessoas com deficiência no cotidiano universitário. Assim como todos os outros projetos de extensão realizados na instituição, ele não conta com nenhum tipo de bolsa ou financiamento. Trata-se de um desdobramento do Seminário Desigualdades e Políticas da Ciência, que aconteceu em Maceió em 2018, especialmente do incentivo de Pamela Block em sua generosa partilha sobre a experiência com as demandas dos estudantes com deficiências em sua instituição. O teve financiamento da Fundação de Amparo a Pesquisa de Alagoas através do edital de Auxílio a Organização de Reuniões Científicas nº01/2018 e resultou no livro (Allebrandt et al., 2020).
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  7. A UFAL é uma universidade pública criada em 1961 e está estruturada em três campus: A. C. Simões situado em Maceió (com 53 cursos de graduação) e outros dois, instalados mais recentemente no interior do estado: o campus Arapiraca (instalado em 2006, com 19 cursos de graduação) e o Campus Sertão ( instalado em 2010, com 8 cursos de graduação).
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  8. Dados obtidos no Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, comparando dados gerais do Brasil colocam Alagoas atrás em vários índices. Enquanto a esperança de vida ao nascer é em 2010 no Brasil de 73,94 anos, ela é em Alagoas de 70,32 anos. A mortalidade infantil segundo o censo de 2010 é de 16,70, em Alagoas ela é de 28,40. Essa mesma variável, segundo os dados do PNAD (2017) é de 12,81% para o Brasil e 18,34% para Alagoas. O IDHM de 2010 é de 0,727 para o Brasil e 0,631 para o estado. A renda per capita segundo o PNAD 2017 foi de R$834,31 no Brasil e em Alagoas foi de R$426,14. O PNAD 2017 também aponta uma taxa de analfabetismo entre pessoas de mais de 15 anos de 7,10% no Brasil. Em Alagoas esse número é de 18,19%; 14,25%(4,29% no BR) entre os brancos; 19,43(9,41% no BR) entre as pessoas negras. Em 2017 as taxas de mortalidade por homicídio registradas no Brasil pelo DATASUS são de 31,38% e em Alagoas os dados marcam 53,82%. Ao desagregar esses dados por raça/cor vemos que no Brasil 6,98% de homicídios tiveram como vítimas pessoas brancas. Em Alagoas o número foi de 0,71% de pessoas brancas mortas por homicídios. Os dados desagregados de taxa de mortalidade por homicídio para pessoas negras em 2017 foi de 19,97% no Brasil e 49,03% em Alagoas. Para mais dados, ver: http://www.atlasbrasil.org.br/
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  9. O quadro apresenta dados de 19 pessoas cujas experiências foram abordadas nas entrevistas. Destas, duas pessoas com deficiência intelectual (Aline e Xavier) não participaram diretamente com interlocutores, sendo considerada apenas a conversa de suas mães/cuidadoras. Maria Júlia, que também tem uma deficiência intelectual, participou junto com a mãe da entrevista. Além disso, é importante destacar que embora metade dos interlocutores seja oriundo do interior de Alagoas, atualmente apenas dois residem fora de Maceió, que são Nelson e Claudionor. As informações que posicionam os sujeitos em termos de classe social serão melhor detalhadas ao longo do texto.
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  10. A ação corporalizada ou o modo como uma deficiência é colocada em prática é uma definição elaborada a partir da leitura ontológica do corpo proposta por Mol (2002).
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  11. Essa elaboração foi inspirada por um diálogo profícuo com Anne Tsing (2015). O argumento de Tsing sobre as "artes de viver em um planeta danificado" é baseado na abordagem dos estudos de ciência e tecnologia (CTS) para o antropoceno, em que a ideia de paisagens danificadas e o significado de viver, crescer e negociar a vida em tais lugares podem nos ajude a entender como a promessa industrial e sua ruína estão dentro do capitalismo.
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  12. Ao propor a simpoiese com as CeSam, Manica(2020) nos lembra que precisamos compreender a rede de agenciamentos que compõe os "fatos". Tomamos aqui mais do que os indicadores sociais para ilustrar as experiências da desigualdade e distopia da pandemia, mas nos apoiamos nas narrativas de experiências plurais para explorar a plasticidade material das nossas vivências da pandemia em uma terra machucada, e suas transformações que nos impedem de ocupar lugares cômodos (Haraway, 2016).
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  13. http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/conflito-de-extrema-complexidade-entre-populacao-de-maceio-e-mina-de-sal-gema-da-braskem-envolve-danos-irreparaveis/
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  14. https://mostrasururu.com.br/mostraoficial2020/subsidencia
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  15. Entre 2018 e 2019 Maceió ganhou destaque na mídia nacional por conta dos abalos sísmicos que alguns bairros da cidade estavam sofrendo. Após investigação geológica concluiu-se que a exploração do Sal-Gema pela mineradora Brasken foi o causador do afundamento do solo. Em consequência disso, mais de sete mil famílias foram desalojadas e tornaram alguns bairros da capital cidades fantasmas.
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  16. Freire, Bonfin e Nazeton (2014) já trazem esse argumento da relação entre saúde e vulnerabilidade socioambiental a partir da análise sobre as inundações ocorridas no estado de Alagoas no ano de 2010.
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  17. https://www.brasildefato.com.br/2020/08/30/um-ano-apos-vazamento-de-oleo-no-nordeste-nenhum-responsavel-foi-identificado
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  18. https://mostrasururu.com.br/mostraoficial2020/a-tres-andares/
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  19. https://mostrasururu.com.br/mostraoficial2020/visao-das-grotas/
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  20. https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/02/brasil-confirma-primeiro-caso-do-novo-coronavirus.shtml
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  21. https://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2020/03/08/homem-que-veio-da-italia-e-o-primeiro-caso-confirmado-de-coronavirus-em-alagoas-diz-secretaria.ghtml
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  22. Não binário é um termo que vem sendo empregado em língua portuguesa (em especial no ativismo digital) com o objetivo de recusar a classificação de gênero e afirmar o conforto com nomes, roupas, acessórios e performances tanto masculinos como feminino (Carvalho, 2016). Optamos por preservar a fluidez na atribuição de gênero para as informações que apresentamos a seu respeito.
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  23. A despeito da redução das consultas médicas disponíveis e do aumento da burocracia para conseguir o atendimento pelo sistema único de saúde durante a pandemia tendo em vista que o Hospital Universitário também recebe e trata pacientes com COVID 19, voltar ao tratamento médico tornou- se uma prioridade.
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  24. É necessário destacar que a família de Claudionor além de ser de uma cidade muito pequena no interior de Alagoas é também uma família de origem camponesa. Seus pais são lavradores e embora sempre tivessem cuidado dele com muito carinho, não puderam lhe dar condições de estudo. Ele aprendeu a ler sozinho e, mesmo antes da difusão da internet, já utilizava esse recurso de forma autônoma para perseguir seus direitos. Na entrevista ele conta que não tendo dinheiro para pagar um advogado e demandar um benefício relacionado à deficiência, ele mesmo estudou a lei e escreveu cartas à presidência da república (nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso) demandando o que lhe era de direito.
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  25. Para um programa iniciante e periférico como o mestrado em antropologia da UFAL, que recebe um financiamento muito menor (incomparável aos centros de excelência), um dos principais poucos indicadores de produtividade alcançáveis é a manutenção de uma média para tempo de conclusão do estudante próxima dos 24 meses.
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